Primeiros passos do dano moral no Direito Brasileiro
A vida humana não é apenas um conjunto de elementos materiais, integrando-a também, valores imateriais, como os morais. O próprio desenvolvimento da sociedade resultou em conflitos entre os indivíduos que ultrapassavam a esfera patrimonial, resultando em ofensas aos direitos pessoais, tais como a dignidade, a intimidade, a honra etc.
A evolução tecnológica, novos meios de produção, além do processo de globalização econômica e social fazem surgir, a todo momento, novas situações e relações sociais que necessitam ser disciplinadas pelo Direito.
Em razão do próprio contexto social da época de sua elaboração, o Código Civil brasileiro de 1916 trouxe a autorização para que se indenizassem integralmente os danos morais, com previsão no artigo 159: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”.
Com a entrada em vigor do mencionado diploma legal, surgiram os primeiros defensores da reparabilidade dos danos morais.
Posteriormente, diversas leis especiais trouxeram regulamentação expressa acerca da matéria: Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei n. 4.177, de 27.08.1972), Código Eleitoral (Lei n. 4.737, de 15.07.1965), Lei de Imprensa (Lei n. 5.250, de 09.02.1967) e Lei dos Direitos Autorais (Lei n. 5.988, de 14.12.1973).
A dignidade da pessoa humana como referência constitucional
Perante as mudanças sociais no Brasil e no mundo, para adaptar-se à realidade, a Constituição Federal do Brasil (CF), promulgada em 1988, também chamada de Constituição Cidadã – em virtude de sua proteção aos direitos fundamentais dos indivíduos -, trouxe em seu texto previsão legal para garantir os direitos individuais, realçando o valor da moral individual, tornando-a mesmo um bem indenizável (art. 5.º, incisos V e X).
No direito brasileiro, antes da Constituição de 1988, a jurisprudência mostrava-se vacilante, prevalecendo a ideia da impossibilidade de ressarcimento do dano moral, embora a doutrina se inclinasse em sentido oposto, defendendo a sua reparabilidade.
Após esse marco, passou esse dano a ser reparado, em suas várias nuances, como lesão à imagem, ao nome, à honra, à intimidade, ou ainda, à integridade psicológica, tratando-se de ofensa ao patrimônio imaterial de determinada pessoa. Assim, a moral individual sintetiza os elementos que integram a vida humana como dimensão imaterial.
Entre os fundamentos do Estado Democrático de Direito, o artigo 1.º da CF de 1988 lista a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa e o pluralismo político.
Desta forma, a dignidade da pessoa humana é uma referência constitucional unificadora dos direitos fundamentais inerentes à espécie humana, ou seja, daqueles direitos que visam garantir o conforto existencial das pessoas, protegendo-as de sofrimentos evitáveis na esfera social1 .
Entende-se, com isto, que a dignidade é uma qualidade intrínseca do ser humano, não podendo ser considerada como algo que possa ser concedido pelo ordenamento jurídico. Tampouco pode ser retirada de nenhum ser humano, embora possa ser violada.
Com efeito, a dignidade da pessoa humana está consagrada na CF de 1988, no Título I – “Dos Princípios Fundamentais”, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1.º, inciso III). Ademais, a dignidade não está assegurada tão somente no dispositivo constitucional mencionado, mas permeia todo o texto constitucional (arts. 170, 227, 230, entre outros).
Ao assinalar, no art. 3°, inciso IV, como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, a Constituição proclama (ainda que de forma implícita) o fundamental valor da dignidade, cujo respeito se encontra na base de qualquer ato, conduta ou atitude voltada para o atingimento do referido objetivo
Desta forma, o princípio da dignidade da pessoa humana constitui a essência do ordenamento jurídico pátrio, exercendo um papel de suma importância na compreensão do sistema constitucional, fundamentando todos os direitos humanos e, em especial, os direitos fundamentais.
A partir da consagração do princípio geral da reparação dos danos morais, outros diplomas legais infraconstitucionais surgiram, aumentando as situações em que é possível requerer o ressarcimento pelo dano moral sofrido: Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078, de 11.09.1990) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069, de 13.07.1990).
Seguindo este entendimento, o Código Civil de 2002 (CC) dispensou tratamento especial ao dano moral, trazendo em seu artigo 186 o reconhecimento expresso da existência de dano moral ao dispor, in verbis: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
Mencionado artigo, em conjunto com o artigo 9272 do referido diploma legal confirma a reparabilidade de dano reputado como moral, constituindo-se grande inovação em nosso ordenamento jurídico.
Assim, a admissibilidade do dano moral é hoje matéria pacífica no Direito brasileiro, tornando as discussões acerca da existência dessa espécie de dano apenas referências históricas3 .
O dano moral na relação de trabalho
O Direito do Trabalho, social por excelência, nasceu com o destino de minimizar as injustiças perpetradas pela força do capital sobre a pessoa do trabalhador.
O princípio da proteção ao trabalhador, como núcleo basilar de princípios especiais do direito individual do trabalho, apresenta o Direito do Trabalho estruturado com suas regras, institutos, princípios e presunções próprias, como meio de proteção à parte hipossuficiente na relação empregatícia: o trabalhador. Este princípio visa retificar (ou atenuar), no plano jurídico, o desequilíbrio inerente ao plano fático do contrato de trabalho4.
A finalidade do Direito do Trabalho é garantir a realização da justiça social, propiciando, a cada cidadão, o exercício pleno de seus direitos, de qualquer natureza. Neste contexto, a admissão da reparabilidade do dano moral trabalhista começou a tomar dimensão com a edição da Constituição Federal de 1988.
As indenizações por danos morais sofridos pelo empregado em decorrência do contrato de trabalho era campo bastante restrito de reconhecimento pelos Tribunais antes do advento da CF de 1988: A massa trabalhadora nacional sempre careceu muito da consciência de seus direitos, sendo preterida do desfrute dos mais elementares e mais ainda daqueles mais específicos e complexos, como pode ser considerado o dano moral.5
Contudo, com a promulgação da CF de 1988 e a grande importância dada em seu corpo ao trabalho como valor social, restou destacado o fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1.º, IV). Ainda, a Carta Maior destacou o trabalho como direito social (art. 6.º), como fundamento da Ordem Econômica (art. 170) e como base da Ordem Social (art. 193).
Neste diapasão, a sociedade se voltou cada vez mais para o trabalho em condições dignas, ou seja, primando pela dignidade do homem, bem como a vida em condições dignas para aquele que trabalha, demonstrando que a preocupação com a dignidade humana é a base constitucional, estendendo o conceito de condições dignas para todos os campos da vida, seja pessoal, seja profissional.
Por consequência, uma década depois, o Supremo Tribunal Federal pacificou a competência da Justiça do Trabalho em ações de dano moral, já que o direito civil é subsidiário. Desde então, a Justiça Especializada passou a julgar os pedidos de reparação por dano moral decorrente da relação de trabalho.
Sabe-se que a proteção à dignidade do trabalhador é inerente ao conteúdo necessário do contrato de trabalho, sendo assim, absolutamente plausível a ocorrência do dano moral no âmbito trabalhista que tem, em regra, o dano moral praticado pelo empregador contra o empregado. Nada impede, porém, que o empregado também ofenda moralmente o empregador, considerando a necessidade do respeito mútuo nas relações de trabalho.
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) sempre contemplou o dano moral e a sua consequente reparação (pelo empregado ou pelo empregador), em decorrência da ruptura do contrato de trabalho pela prática de ato lesivo da honra ou da boa fama, em seus artigos 482, letras j e k, e 483, letra e.
Com o advento da Lei 13.467/2017, conhecida como “Reforma Trabalhista”, a CLT recebeu o seguinte dispositivo: Art. 223-B. Causa dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão que ofenda a esfera moral ou existencial da pessoa física ou jurídica, as quais são as titulares exclusivas do direito à reparação.
Temos assim que a Reforma Trabalhista inseriu a conceituação do chamado dano extrapatrimonial, que nada mais é que o dano moral, o dano sem cunho econômico.
É certo que o dano moral deve afetar a personalidade do ofendido, devendo ser real e efetivo, ou seja, ser determinado, definido. Com isto, não se admite dano eventual, incerto ou hipotético, como de uma possibilidade de ocorrer.6
Em que fase do contrato de trabalho pode ocorrer o dano extrapatrimonial?
Os danos morais nas relações de trabalho podem ocorrer nas seguintes fases: pré-contratual, durante o contrato de trabalho, em razão da cessação do contrato de trabalho e pós-contratual.
A fase pré-contratual compreende o período anterior ao contrato de trabalho (fase de testes, análise de currículo, exame médico etc). O dano moral poderá surgir neste momento, causado ainda antes da contratação, quando ainda não há o vínculo direto entre empregador e empregado (antes da assinatura do contrato de trabalho).
Várias são as possibilidades da ocorrência de dano moral na fase précontratual, entre elas, a não contratação em razão de ter ajuizado ação na Justiça do Trabalho, entrando na chamada “lista negra” entre empregadores.
Na fase contratual, o dano moral ocorrerá quando a parte deixar de cumprir com uma ou várias das obrigações derivadas do contrato de trabalho, podendo resultar na resolução ou não do pacto laboral.
Por fim, poderá o ofendido ser sujeito passivo de dano extrapatrimonial na fase pós-contratual (mais comum), como, por exemplo, o ex-empregador der informações desabonadoras e inverídicas sobre a conduta do empregado ao futuro empregador, afetando a reputação profissional e a boa fama do trabalhador.
Destarte, a possibilidade de ocorrência do dano moral trabalhista nas fases pré-contratual, contratual e pós-contratual da relação de emprego é realidade em nossa sociedade.